sábado, 6 de março de 2010



Existiu um tempo, para além da infância e aquém da desilusão, em que acreditei nas utopias. No triunfo inevitável do bem, no carácter indomável da liberdade, na bondade intrínseca da humanidade e na força irresistível da palavra.

Foram tempos em que li, avidamente, as vidas dos Santos, que foram os meus primeiros heróis. Fascinava-me o heroísmo de quem dedicou a sua vida a tentar melhorar, ou até a salvar, as vidas dos outros. Claro que dispensei logo algumas espécies de santos: os que alcançaram a santidade matando sarracenos, os que se distinguiram como servidores do Santo Ofício, os que converteram de forma coerciva milhares de índios, os que pactuaram com os poderes temporais arbitrários e até aqueles que se refugiaram nos claustros, para fugir ao mundo difícil dos homens e procurar o fácil aconchego de Deus.

Não, esses santos não me interessam, nunca me interessaram. Interessam-me apenas aqueles que tentaram viver como Jesus Cristo, o Tal que deu a sua vida pelos outros e pregou a humildade, o amor ao próximo, a igualdade de todos os seres humanos e o altruísmo em todas as circunstâncias.

Assusta pensar como esta mensagem foi subvertida, muitas vezes a partir do próprio púlpito, ao longo dos séculos. Como foi possível perseguir, agrilhoar, torturar, espancar e matar em nome de Jesus?

Como comecei por escrever, resta-me muito pouco dessa fé na humanidade e em Deus. Sim, porque não Lhe perdoo as ausências quando o horror triunfa e Ele não consegue ou não quer evitar o sofrimento de tantos homens, mulheres e crianças inocentes. Sim, porque eu não aceito o facto da redenção da humanidade e do indivíduo ter de implicar, inevitavelmente, sacrifício e dor. Como pode Deus, entidade de infinita bondade, comprazer-se com o sacrifício ou a infelicidade dos seus filhos? Não, o Deus em que eu quero acreditar não tolera a injustiça, a infelicidade ou a crueldade.

Talvez a escolha divina resida no estrito respeito pelo livre-arbítrio de cada homem e de cada mulher. Se assim for, isso significa que o Cosmos é uma democracia e que a liberdade é a sua natureza intrínseca.

Quem escreve estas linhas admira os santos, mas sabe que não é essa a sua natureza. Tenta, mas não consegue. Sabe o que é justo, mas não consegue sê-lo. Levanta-se, mas cai logo a seguir. Vive diariamente derrotado pelas circunstâncias, incapaz de dar a outra face e de ser, em todas as circunstâncias, ou apenas numa parte aceitável delas, altruísta.

Sou político e por isso, tendo em conta a interpretação popular dos dias que correm, faço parte de uma raça danada. O Povo vota-nos, mas despreza-nos tal como o fazia anteriormente em relação aos insuportáveis fidalgotes (para agravar a coisa, sou uma espécie de último moicano monárquico, nestes tempos de centenário golpista).

Assim, eu, pecador, me confesso. Amanhã, a partir das primeiras horas do dia, vou voltar a tentar ser um homem melhor. É um exercício muitas vezes repetido, mas sempre votado ao fracasso. Só peço a Deus a oportunidade de não ter de ver ou ouvir mais uma patifaria da nossa estirpe socialista. Mais uma perseguição política aos outros (como a que está novamente em curso na Escola do Corvo) ou a prática de mais uma insensibilidade em relação a quem está em dificuldades e é mais vulnerável (como a situação vivida pelas desgraçadas trabalhadoras da Cofaco da ilha do Faial).

Se isso suceder, sei que serei tomado pela cólera e pelo muito pagão hábito do olho por olho, dente por dente. Sim, não tenho, de facto emenda ou esperança. Dar a outra face? Não sou capaz e … pior que tudo, não quero e não me arrependo de não querer.