terça-feira, 17 de março de 2009

Um texto de J. M. Soares de Barcelos

Como prometido, cá vai a passagem de Raul Brandão com o Hilário, do Corvo. Toda a gente sabe que Raul Brandão era amigo íntimo de Vitorino Nemésio. A sua amizade iniciou-se quando passou pelas ‘ilhas desconhecidas’. Além de terem mantido correspondência à distância, encontravam-se frequentemente e passavam longos fins-de-semana nos aposentos de Brandão, no Norte do país. Quase ninguém sabe é que também era amigo íntimo de um corvino, amizade adquirida aquando da sua passagem pela Ilha em 1924. Esse corvino chamava-se Manuel Hilário e hoje, muitos anos depois da sua morte, é ainda lembrado pela gente da sua ilha e da das Flores.

Foi protagonista em muitas histórias e esta não é inédita. Já foi publicada pelo Dr. Horácio Flores, que o conhecia desde criança. Hilário fora amigo íntimo do avô, e teve uma longevidade capaz de vir a tornar-se amigo do pai, um dos industriais mais conhecidos das Flores, e depois dele próprio, nessa altura ainda um rapazinho. Hilário distinguia-se do resto da gente da Ilha, não só por saber ler e escrever correctamente, como pela facilidade de expressão, sendo frequentemente convidado para discursar quando na Ilha havia baptizado, casamento ou alguma rara visita oficial ao Corvo. Disto já falei na passada semana.

Em 1924, no âmbito das chamadas Visitas dos Intelectuais, Raul Brandão, com então 57 anos, já dono de um poder de escrita fantástico, visitou as Ilhas Adjacentes, tendo saído de Lisboa em Junho e deixado os Açores, rumo à Madeira, em meados de Agosto. Dessa viagem, publicaria, dois anos mais tarde, As Ilhas Desconhecidas – Notas e Paisagens, um livro com pouco mais de 130 páginas mas recheado de notas que ilustram bem a vida do povo das várias ilhas no primeiro quartel do século XX. Diz-se que foi ele quem cognominou S. Miguel de ‘Ilha Verde’, a Terceira de ‘Ilha Lilás’, o Pico de ‘Ilha Negra’ e o Faial de ‘Ilha Azul’. Talvez tenha sido.

Na sua visita ao Corvo, não sei se encantado com a vista da lagoa do Caldeirão, esqueceu-se das horas e, quando chegou ao Porto da Casa para embarcar, já o Vapor tinha levantado ferro rumo às Flores. Como resultado, acabou por ficar fechado na Ilha durante cerca de duas semanas. Foi nesse tempo que se tornou amigo íntimo de Hilário, que o acompanhava para todo o lado e lhe mostrava os pormenores da vida diária, o que justifica ter o escritor dedicado cerca de 17 das páginas desse livrinho à mais pequena ilha dos Açores.Com a devida permissão, passo a palavra ao Dr. Flores, que melhor do que eu, e de modo mais expressivo, sabe contar o resto da estória. Depois de ler o artigo, era-me quase impossível contá-la sem cometer plágio. Aqui vai o excerto final do excelente artigo que publicou, em Agosto passado, no “Tribuna das Ilhas”.

“Conheceu o Hilário e não terá sido por acaso que o escolheu como crítico, submetendo à sua apreciação o manuscrito que ia elaborando no aproveitamento de tempo livre daquele involuntário exílio. O Hilário não sabia que Raul Brandão era já um notável escritor, e a simplicidade de trato e de vestuário permitiu e conduziu ao tratamento por tu. A princípio, o improvisado crítico estranhava que a imaginação do autor embelezasse por vezes a verdade, e não se continha:
- Mentiramas, Arraúl, isso é que são mentiramas!
Mas foi-se progressivamente adaptando às realidades da criação literária e por fim o comentário espelhava já a aceitação do tempero de ficção:
- Essa tá bem alambrada, Arraúl!

Um dia, numa vinda às Flores, por mal dos seus pecados, entre os quais o de ser vaidoso como uma prima-dona, não resistiu à tentação de contar a minha mãe que o seu amigo Brandão lhe mandara um exemplar da primeira edição do livro, com terna dedicatória. Leitora inveterada, minha mãe disse-lhe que Raul Brandão era então considerado uma das grandes figuras da nossa literatura. O Hilário ficou estarrecido. Quem o diria, um homem tão simples, que andara quinze dias no Corvo sempre com as mesmas calças de cotim, a contar os tostões, que almoçava linguiça com pão de milho, acompanhada dum copito de vinho de cheiro da Graciosa, na tasca da tia Ana. E antes que lhe passasse o susto e o espanto, vá de escrever longa e respeitosa missiva ao grande escritor. Tratava-o por Vossa Excelência, pedia-lhe humildemente perdão pelo abuso do tratamento por tu a que por ignorância se atrevera, proclamava-se seu humilde admirador, e reiterando a contrição despedia-se com um cerimonioso “ Sem outro assunto, etc. e tal, atento, venerador e obrigado”. A resposta, no barco seguinte, foi sucinta. Num lacónico cartão-de-visita, Raul Brandão dizia: “ Manuel, vai bardamerda!” E só após o reatamento do tratamento por tu, e de o Hilário ter manifestado um evidente arrependimento pelo absurdo remorso, foi reatada a assídua correspondência entre os dois grandes amigos.”

Nota final: Para quem não conhecer, Horácio Flores é um ‘alentejano’ nascido na Ilha das Flores, que, depois de se licenciar em Medicina, se especializou em Cirurgia no Hospital de Santa Maria (Lisboa), tendo-se distinguido não só no desempenho da sua profissão, tanto neste Hospital Central, de onde saiu por razões que não vale a pena referir aqui, como no Hospital de Beja do qual foi director durante muitos anos. É também um distinto jornalista, escrevendo regularmente para vários jornais, do Continente e dos Açores, tendo inclusivamente sido o director do Jornal do Alentejo a partir de 1976.

(De J. M. Soares de Barcelos, no Diário Insular do dia 17 de Março de 2009)