"A preocupação com o sofrimento dos touros parece não se aplicar a animais menos telegénicos. Por enquanto talvez ainda comam, mas certamente que vão deixar de comer, pois o novo Regulamento de Animais de Sintra estabelece que os animais não podem sofrer psicológica ou fisicamente naquele concelho.
É certo que o dito regulamento para já apenas se destina aos espectáculos - como os circos e as touradas -, mas quem já entrou num aviário certamente comprovou o sofrimento psicológico e físico experimentado pelos frangos e demais seres de pena que se encontram nos ditos estabelecimentos. O mesmo regulamento, se fosse para ser levado a sério, poderia conduzir à extinção as reservas de caça existentes no concelho, pois, como se supõe, a felicidade não é propriamente um estado de alma entre as espécies cinegéticas na época da caça.
Seja em Sintra ou em qualquer outro lugar. Viana do Castelo, Braga e Cascais fazem companhia a Sintra nesta nova bandeira do politicamente correcto dos direitos dos animais ou mais precisamente dos direitos de alguns animais. Tanto mais que este tipo de medidas dá boa imprensa.
Tão boa que ninguém se lembra de confrontar os partidos com o duplo critério que adoptam neste assunto. Ou será que o BE, que apresentou a proposta do fim das touradas em Sintra - proposta essa que só teve os votos contra do PCP e de alguns dos eleitos do PS -, também vai propor o mesmo tipo de regulamento em Salvaterra de Magos, única autarquia presidida pelo BE e onde apresentar um regulamento destes implicará com quase toda a certeza perder as eleições?
Estranhamente, a preocupação com o sofrimento dos animais que tanto incomoda os autoproclamados defensores dos touros vivos - convirá não esquecer que se acabarem as touradas ninguém investirá na criação de touros bravos, logo os touros bravos passarão a touros bravos desaparecidos - não se aplica a animais menos telegénicos.
A mim, por exemplo, impressiona-me muito mais a morte dos peixes do que as touradas, as matanças ou as chegas de bois. Tenho uma atávica dificuldade em entender como há quem se divirta em campeonatos de pesca e exasperam-me aquelas boas almas que passam horas imóveis, de cana de pesca na mão, à espera que um peixe morda o anzol para em seguida o deixarem morrer asfixiado. Mas não creio que fosse aceitável que um regulamento semelhante ao que foi aprovado em Sintra, Cascais ou Viana do Castelo impedisse a pesca desportiva ou outra qualquer em nome da condenação do sofrimento físico e psicológico dos peixes.
Acontece simplesmente que as touradas vivem hoje, em Portugal, um momento equivalente ao que aconteceu há algumas décadas com o fado. Consoante as épocas, o fado foi acusado de degenerar a raça ou de ser reaccionário e não havia escritor ou artista que não se sentisse na obrigação de declarar o seu nojo por aquilo que consideravam um arrazoado acanalhado de canções de faca, alguidar e ciúme. Até um acontecimento com características populares como a Grande Noite do Fado não merecia o menor interesse quer aos militantes da canção popular quer ao estudiosos que todos os dias lastimavam que o povo preferisse ouvir rádio em vez de cantar nas mondas e nas ceifas.
Como nesses tempos não existia a figura de ministro da Cultura, o mesmo não vivia o embaraço de surgir nas fotografias ao lado de fadistas e guitarras. Hoje o fado passou de canção cantada em Portugal para uma espécie de praga nacional: à excepção daqueles que, como é o meu caso, não cantam nada, parece existir um fadista dentro de cada português. Nos locais mais recônditos do país organizam-se noites de fado e fala-se do dito como se a Severa fosse lá da terra. E, claro, os políticos e as elites já não têm vergonha de aparecer ao lado dos fadistas. Ensina aliás a última campanha presidencial que ter uma mandatária que cante fado, como aconteceu a Cavaco Silva com Kátia Guerreiro, é uma vantagem muito acrescida sobre os outros candidatos que também escolheram cantores para mandatários mas especializados noutros estilos supostamente mais modernos mas certamente menos eficazes na hora de fazer esquecer aos auditórios que o candidato ainda não chegou - veja-se o caso de Manuel Alegre com Pacman.
Não sei se as touradas conseguirão fazer o percurso do fado e recuperar a popularidade. Logo nada me chocaria que as mesmas deixassem de existir, em Portugal, por falta de público. O que me parece um claro abuso de poder por parte dos autarcas é arrogarem-se o direito de decidir que determinados espectáculos não terão lugar nos respectivos concelhos.
Agora são as touradas e os circos. Amanhã podem ser as feiras, os concertos dum determinado tipo de música, uma peça de teatro ou outro espectáculo qualquer. É sempre fácil arranjar argumentos para legitimar uma proibição.
Presumo que nas próximas autárquicas a questão das touradas não suscite especial interesse. Mas neste país onde o poder central e local já achou um sinal de progresso proibir toques de sinos, procissões e piqueniques, neste mesmo país onde uma autarquia achou por bem adquirir um cinema que mantém mais ou menos fechado (falo do São Jorge, em Lisboa), unicamente para impedir que uma igreja pouco institucional ali se instalasse, conviria perceber o que pensam os diversos candidatos não sobre as touradas mas sim sobre o direito a decidirem acerca dos espectáculos e eventos que podemos frequentar."
(Da autoria da jornalista Helena de Matos)
É certo que o dito regulamento para já apenas se destina aos espectáculos - como os circos e as touradas -, mas quem já entrou num aviário certamente comprovou o sofrimento psicológico e físico experimentado pelos frangos e demais seres de pena que se encontram nos ditos estabelecimentos. O mesmo regulamento, se fosse para ser levado a sério, poderia conduzir à extinção as reservas de caça existentes no concelho, pois, como se supõe, a felicidade não é propriamente um estado de alma entre as espécies cinegéticas na época da caça.
Seja em Sintra ou em qualquer outro lugar. Viana do Castelo, Braga e Cascais fazem companhia a Sintra nesta nova bandeira do politicamente correcto dos direitos dos animais ou mais precisamente dos direitos de alguns animais. Tanto mais que este tipo de medidas dá boa imprensa.
Tão boa que ninguém se lembra de confrontar os partidos com o duplo critério que adoptam neste assunto. Ou será que o BE, que apresentou a proposta do fim das touradas em Sintra - proposta essa que só teve os votos contra do PCP e de alguns dos eleitos do PS -, também vai propor o mesmo tipo de regulamento em Salvaterra de Magos, única autarquia presidida pelo BE e onde apresentar um regulamento destes implicará com quase toda a certeza perder as eleições?
Estranhamente, a preocupação com o sofrimento dos animais que tanto incomoda os autoproclamados defensores dos touros vivos - convirá não esquecer que se acabarem as touradas ninguém investirá na criação de touros bravos, logo os touros bravos passarão a touros bravos desaparecidos - não se aplica a animais menos telegénicos.
A mim, por exemplo, impressiona-me muito mais a morte dos peixes do que as touradas, as matanças ou as chegas de bois. Tenho uma atávica dificuldade em entender como há quem se divirta em campeonatos de pesca e exasperam-me aquelas boas almas que passam horas imóveis, de cana de pesca na mão, à espera que um peixe morda o anzol para em seguida o deixarem morrer asfixiado. Mas não creio que fosse aceitável que um regulamento semelhante ao que foi aprovado em Sintra, Cascais ou Viana do Castelo impedisse a pesca desportiva ou outra qualquer em nome da condenação do sofrimento físico e psicológico dos peixes.
Acontece simplesmente que as touradas vivem hoje, em Portugal, um momento equivalente ao que aconteceu há algumas décadas com o fado. Consoante as épocas, o fado foi acusado de degenerar a raça ou de ser reaccionário e não havia escritor ou artista que não se sentisse na obrigação de declarar o seu nojo por aquilo que consideravam um arrazoado acanalhado de canções de faca, alguidar e ciúme. Até um acontecimento com características populares como a Grande Noite do Fado não merecia o menor interesse quer aos militantes da canção popular quer ao estudiosos que todos os dias lastimavam que o povo preferisse ouvir rádio em vez de cantar nas mondas e nas ceifas.
Como nesses tempos não existia a figura de ministro da Cultura, o mesmo não vivia o embaraço de surgir nas fotografias ao lado de fadistas e guitarras. Hoje o fado passou de canção cantada em Portugal para uma espécie de praga nacional: à excepção daqueles que, como é o meu caso, não cantam nada, parece existir um fadista dentro de cada português. Nos locais mais recônditos do país organizam-se noites de fado e fala-se do dito como se a Severa fosse lá da terra. E, claro, os políticos e as elites já não têm vergonha de aparecer ao lado dos fadistas. Ensina aliás a última campanha presidencial que ter uma mandatária que cante fado, como aconteceu a Cavaco Silva com Kátia Guerreiro, é uma vantagem muito acrescida sobre os outros candidatos que também escolheram cantores para mandatários mas especializados noutros estilos supostamente mais modernos mas certamente menos eficazes na hora de fazer esquecer aos auditórios que o candidato ainda não chegou - veja-se o caso de Manuel Alegre com Pacman.
Não sei se as touradas conseguirão fazer o percurso do fado e recuperar a popularidade. Logo nada me chocaria que as mesmas deixassem de existir, em Portugal, por falta de público. O que me parece um claro abuso de poder por parte dos autarcas é arrogarem-se o direito de decidir que determinados espectáculos não terão lugar nos respectivos concelhos.
Agora são as touradas e os circos. Amanhã podem ser as feiras, os concertos dum determinado tipo de música, uma peça de teatro ou outro espectáculo qualquer. É sempre fácil arranjar argumentos para legitimar uma proibição.
Presumo que nas próximas autárquicas a questão das touradas não suscite especial interesse. Mas neste país onde o poder central e local já achou um sinal de progresso proibir toques de sinos, procissões e piqueniques, neste mesmo país onde uma autarquia achou por bem adquirir um cinema que mantém mais ou menos fechado (falo do São Jorge, em Lisboa), unicamente para impedir que uma igreja pouco institucional ali se instalasse, conviria perceber o que pensam os diversos candidatos não sobre as touradas mas sim sobre o direito a decidirem acerca dos espectáculos e eventos que podemos frequentar."
(Da autoria da jornalista Helena de Matos)