O Açoriano Oriental publica hoje uma interessantíssima entrevista com o historiador Joaquim Fernandes, autor do livro de ficção “O Cavaleiro da Ilha do Corvo”. Pelo seu extraordinário interesse para a Ilha do Corvo, abro uma excepção neste blogue e transcrevo, quase na íntegra, a referida entrevista.
Foi o relato de Damião de Góis, cronista do Rei D. Manuel I, sobre uma estátua de um cavaleiro encontrada pelos portugueses quando desembarcaram, pela primeira vez, na ilha do Corvo que desafiou a sua curiosidade como historiador e a imaginação de escritor.
Foi o relato de Damião de Góis, cronista do Rei D. Manuel I, sobre uma estátua de um cavaleiro encontrada pelos portugueses quando desembarcaram, pela primeira vez, na ilha do Corvo que desafiou a sua curiosidade como historiador e a imaginação de escritor.
“O Cavaleiro da Ilha do Corvo”, editado pela “Círculo de Leitores”, é a primeira obra de ficção de Joaquim Fernandes. O historiador tem publicadas várias obras de investigação histórica, mas desta feita decidiu aventurar-se pelo romance, partindo de factos históricos que durante muitos anos o intrigaram e o incentivaram a aprofundar a investigação.
Em entrevista, explica o outro lado do livro de ficção – que dados encontrou ao longo da investigação histórica e a que conclusões chegou.A primeira consequência da sua investigação é a tese de que navegadores de outras nacionalidades aportaram nas ilhas dos Açores, antes dos portugueses, e de que a existência do arquipélago seria do conhecimento de outros povos.
A intriga ficcional que cumpre o propósito de divulgar informação histórica, serve-se da personagem de um historiador americano descendente de açorianos que decide seguir o rasto da Estátua da Ilha do Corvo e que acaba por se confrontar com uma conspiração destinada a manter a todo o custo o prestígio de Cristóvão Colombo.
De onde surgiu este enredo fictício?
Começou pela leitura da crónica “O Príncipe D. João”, da autoria de Damião de Góis, um dos nossos mais credíveis e fiáveis cronistas – cronista de D. Manuel e de D. João II.
Foi um documento que li há uma década atrás. O insólito da descrição de uma estátua de pedra que os portugueses terão encontrado quando desembarcaram pela primeira vez na ilha do Corvo despertou-me o interesse.
Os historiadores podem ser muito curiosos... E a verdade é que começou a funcionar como um bichinho de curiosidade e como sou um pouco rato de biblioteca comecei a tentar puxar todos os fios que pudessem ter a ver com esta descrição, para perceber se tudo não passava de uma invenção, de uma tradição lendária, ou de um rumor propagado ao longo dos tempos sem qualquer consistência.
Reuni centenas de fontes - no fim do livro publico um elenco detalhado com cerca de dez páginas para informar as pessoas. E inventei uma intriga, um “trailer” histórico com alguma tensão e com personagens fictícias.No fundo, no fundo, o romance acaba por ser uma maneira de expor informação histórica que está diluída ao longo de 350 páginas.
E através das fontes que reuniu, a que conclusões chegou?
Temos de aceitar que Damião de Góis era um homem sério que não embarcava em ficções, nem dizia as coisas por dizer nas suas crónicas, porque obviamente corria riscos. É um homem que fez figura no mundo do Renascimento. Foi um grande cronista e é o primeiro grande humanista europeu português (convive com Erasmus) e nas suas crónicas debita informações inéditas e originais, como o aparecimento em Lisboa do primeiro rinoceronte.
É um testemunho considerado válido. Testemunhou a chegada dos restos da estátua com o cavaleiro, apontando para ocidente com o braço esticado - os restos da estátua que D. Manuel mandou que fossem trazidos para Lisboa e que infelizmente partiram-se pelo caminho - a desculpa do mestre pedreiro que foi mandado à ilha foi que partiram-se numa tempestade durante a viagem.
Ora, a maneira como faz a descrição vai ao encontro de outras fontes que tive oportunidade de cruzar – fontes clássicas... Damião de Góis falava na possibilidade de serem vikings, povos do norte que terão aportado às ilhas ocidentais dos Açores.
E há historiadores árabes que falam na existência de estátuas que serviam de marcação dos limites do oceano navegável. Além disso, temos um mapa fundamental que é um testemunho convincente da própria descrição da estátua do Corvo - o mapa dos irmãos Pizigani de 1367 (quase cem anos antes dos portugueses chegarem aos Açores) onde está escrita uma referência em latim, dizendo “estas são as estátuas dentro das Antílias”.
São elementos cruzados de diferentes séculos que de uma maneira convincente vêm provar que de facto Damião de Góis descreveu um acontecimento importante: a chegada a Lisboa dos restos de uma estátua que ninguém sabe quem construiu, mas que pode ter sido colocada no Corvo por ocasião de descobertas acidentais, feitas por outros povos, antes do ciclo de descobertas dos portugueses.
Na sua opinião é possível que não tenham sido os portugueses a descobrirem as ilhas dos Açores?
O que eu digo é que houve outros descobridores em tempos muito distantes que não fazem parte da nossa memória histórica. E isso não retira mérito à descoberta dos portugueses, porque não basta avistar uma ilha, chegar lá, pôr lá o pé, e depois vir embora. Descobrimento é também exploração, ocupação sistemática por populações – conhecimento detalhado.
O nosso ciclo de descobrimentos foi favorecido pelo aparecimento da imprensa, do livro e a possibilidade de ter um diário de bordo. Ou seja, beneficiou de uma maior capacidade de transmissão de memória, através da imprensa escrita. E isso não existia na altura dos fenícios e cartagineses.
Foi por essa razão que as primeiras descobertas portuguesas passaram à história como uma primeira globalização planetária. Mas a minha investigação está a apontar para outros ciclos históricos dos quais não temos consciência porque é uma imensidade de tempo tão grande que está completamente fora do nosso alcance perceber. De facto houve outras realizações, houve outras incursões nos mares.
É preciso ter em atenção que, no Corvo, no século XVIII, apareceram moedas fenícias, e em São Miguel, apareceu um amuleto do século VIII d.C..Há aqui sinais que levam a supor que outros povos com capacidade de navegação tiveram a felicidade de encontrar as ilhas. E penso que, para os açorianos, isso é motivo de orgulho, de enriquecimento do seu próprio historial, porque acabam por ter uma percepção de uma outra entidade cultural muito mais profunda – de serem parte constituinte de outro tipo de aventuras que levaram à abertura do mundo.
E há vestígios ainda desta estátua?
Infelizmente, não. Deve ter ocorrido qualquer coisa - e é essa a intriga do meu romance. Mas tive de inventar muito pouco, porque os factos em si já são tão fantásticos que acabei por não ter necessidade de imaginar muita coisa.
Os aspectos mais fantásticos e inimagináveis estão nas narrativas, estão nos documentos, nas cartografias, nas moedas, e num conjunto de pistas que eu disponho com a minúcia possível - não de uma maneira exaustiva, porque um romance não é uma tese histórica.
Infelizmente, não há vestígios dos restos da estátua que correspondiam a uma perna do cavalo e aos restos do braço estendido do cavaleiro que apontaria no sentido da América, talvez para dizer que seria perigoso avançar para além daquele ponto, pelo menos é esse o entendimento do significado que as estátuas – marco teriam no Oceano Atlântico (a opinião veiculada pelos próprios historiadores árabes no século X era de que essas estátuas serviam de marco de delimitação da possibilidade de navegação, o que é extraordinário).
Segundo o testemunho de Damião de Góis, os restos estiveram alguns dias nos armazéns reais e depois disso ninguém sabe o que se passou.Esse enigma, esse desaparecimento misterioso, é que dá origem à construção ficcional do romance.
E o romance é, no fundo, a tentativa de perseguição da localização das provas da existência da estátua e do que está implícito na ideia da existência da estátua que não se fica apenas pela estátua em si, mas que deverá ter atenção a todas as implicações históricas para a cronologia clássica das navegações no Atlântico.
E há lendas sobre a estátua?
Tive ocasião de explorar todas as fontes lendárias associadas aos Açores e a lenda do Corvo faz parte de uma certa consciência local de tradição popular, junto com outras como a lenda das Sete Cidades, tantas lendas popularizadas e muito interessantes que nos remetem também para o mundo da fábula, das ilhas imaginárias do Atlântico, ligadas ao possível refúgio de D. Sebastião depois da derrota em Alcácer – Quibir ou mesmo com as lendas a do rei Artur.
É um misto de ficção, de lenda, mas também de história. A estátua do Corvo, partindo do depoimento de Damião de Góis, amparado por outras fontes cruzadas e separadas no tempo, acaba por ser um facto plausível e histórico, para além de lendário.