O historiador Rui Ramos sobre os ideais republicanos e a pertinência de celebrar um século sobre a sua implantação.
Em 2010, a propósito do "centenário da república", vamos comemorar o quê? Uma ideia – a ideia de república? Um acontecimento – o derrube revolucionário da monarquia constitucional nas ruas de Lisboa em 5 de Outubro de 1910? Ou um regime – o que resultou do monopólio do Estado e do constrangimento da vida pública por um partido da esquerda radical, o Partido Republicano Português, entre 1910 e 1926? Talvez alguém, um dia, nos venha explicar o que significa a efeméride. Entretanto, examinemos as hipóteses, antes de reflectir um pouco sobre a especulação político-partidária que pode estar por detrás de tudo isto.
UMA IDEIA?
Se é para comemorar a ideia de república, a escolha do 5 de Outubro de 1910 não é a mais feliz, embora seja há muito tempo feriado nacional. É que aquilo que desde o séc. XVIII interessou aos verdadeiros "republicanos" nunca foi saber se o chefe de Estado é electivo ou não mas o tipo de Estado e vida pública. O ideal republicano era o de uma comunidade de cidadãos independentes a viver sujeitos às leis e não ao arbítrio de outros homens, mesmo que tivessem um rei, como a Grã-Bretanha.
Nesse sentido, o processo de republicanização não foi obra da revolução de 1910 mas da chamada "revolução liberal" da primeira metade do séc. XIX: foram os liberais que reduziram o rei a um chefe de Estado com poderes definidos por uma constituição e que estabeleceram em Portugal o princípio do Estado de Direito e as instituições e cultura da cidadania.
Na prática, os liberais fizeram da monarquia constitucional o que eles referiam como "uma república com um rei", isto é, uma comunidade de cidadãos livres com um chefe de Estado dinástico. A Câmara dos Pares estava aberta a todos os que satisfizessem requisitos legais que nada tinham a ver com o nascimento. A Igreja ainda era oficial (como, aliás, nas repúblicas desse tempo) mas havia liberdade de consciência e estava previsto o registo civil.
Nesse sentido, se as comemorações de 2010 visam celebrar o fim da monarquia constitucional, governada pelos liberais, estaremos então perante uma festa reaccionária para vitoriar o fim de um regime que trouxe as instituições do Estado moderno, a extinção das ordens religiosas, o Código Civil e o maior eleitorado, em termos proporcionais, antes de 1975?
Em 1910, é verdade, a monarquia constitucional estava em grandes apuros. Tinha uma classe política desacreditada e incapaz de assegurar bom governo e o jovem rei D. Manuel II era atacado por quase toda a gente, da direita e da esquerda. O Partido Republicano Português, um movimento sobretudo lisboeta, conseguira criar um sério problema de ordem pública que a monarquia constitucional nunca poderia ter resolvido sem se negar a si própria, tornando-se num regime repressivo, o que a sua classe política não podia aceitar. Quando o PRP resolveu tentar a sua sorte, em Outubro de 1910, subvertendo a guarnição de Lisboa, quase ninguém apareceu para defender o regime.
Tudo isto é verdade. Mas se o objectivo é celebrar a morte de sistemas políticos apodrecidos, ignorando o que se lhe seguiu, não deveríamos comemorar também o 28 de Maio de 1926, que pôs fim a um regime desacreditado?
UM REGIME?
Gostamos de contrastar o actual regime democrático, desde 1974, com a ditadura do Estado Novo (1933-1974). Mas o regime implantado em Portugal em 1910 e que durou até 1926, a chamada I República, tem tão pouco a ver com a actual democracia como o salazarismo. A I República passou por várias situações e foi dirigida por várias personalidades. Mas na sua versão dominante, associada ao monopólio do poder pelo Partido Republicano Português de Afonso Costa, foi um dos regimes mais intolerantes, exclusivistas e violentos do séc. XX em Portugal.
A "democracia" do PRP assentou na redução do eleitorado através da negação do direito de voto aos analfabetos: durante a monarquia, puderam votar 70% dos homens adultos em Portugal; com a I República, essa percentagem reduziu-se a 30%. A "tolerância" de Afonso Costa consistiu numa guerra de morte à Igreja Católica, sujeita a uma "lei de separação" que visava, de facto, o contrário: a sujeição do clero e dos católicos à prepotência e arbítrio de um Estado hostil. Críticos e oposicionistas ficaram sujeitos à violência dos ‘gangs’ armados do PRP, que em 1911 trataram de destruir (dizia-se então "empastelar") todos os jornais ditos "monárquicos" em Lisboa.
A I República foi ainda o primeiro regime a excluir expressamente as mulheres da vida cívica, ao negar-lhes por lei o direito de voto. Nas colónias de África, seguiu uma política dura e racista, que em 1915 chegou ao genocídio das populações do Sul de Angola. Afonso Costa forçou ainda a entrada de Portugal na I Guerra Mundial (1914-1918). Em dois anos, houve quase tantos mortos como nos 13 anos de guerras coloniais entre 1961 e 1974. É com este regime que a nova democracia portuguesa quer identificar-se em 2010?
O que explica então esta fúria comemorativa? Fundamentalmente, as metamorfoses da esquerda. As esquerdas portuguesas, há 30 anos, eram marxistas, de linha soviética, maoista ou social-democrata "avançada". Desprezavam os velhos republicanos, patriotas e colonialistas, de que uma parte até aderira ao Estado Novo na década de 1960, por causa das colónias (Norton de Matos, por exemplo, tornou--se uma referência da propaganda colonial salazarista). Basta ler os livros de História publicados na década de 1970 por autores marxistas: o republicanismo era para eles uma coisa "pequeno-burguesa", de caixeiros com bigodes.
Depois do 25 de Abril de 1974, o coronel Vasco Gonçalves, na tomada de posse do II Governo Provisório, em Julho, avisou logo que a revolução não tinha sido feita para voltar "ao triste passado de antes de 1926". Exactamente: a república, para as esquerdas portuguesas em 1974, era um "triste passado". Aliás, um dos partidos logo convidados para integrar o Governo Provisório foi o Partido Popular Monárquico, por via do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles. Tanto Álvaro Cunhal como Mário Soares, filhos de antigos republicanos, evitaram o anticlericalismo, até para poderem conviver com os "católicos progressistas", que formaram uma das principais componentes das esquerdas portuguesas na década de 1970.
A Democracia em Portugal, entre 1974 e 1976, foi construída contra o Estado Novo mas também contra a I República. Desde logo, constitucionalmente. Ninguém queria o parlamentarismo e o desregramento dos partidos. Por isso, a Constituição de 1976 inspirou-se na monarquia constitucional, ao estabelecer um Presidente da República que, à parte o ser eleito por sufrágio universal, tinha os mesmos poderes do Rei da Carta Constitucional de 1826. Por essa via, o regime com o qual, de facto, a actual democracia tem mais em comum é a monarquia constitucional de 1826-1910.
As esquerdas portuguesas só mudaram de opinião perante a velha república quando deixaram de ser marxistas e de querer fazer em Portugal uma revolução socialista. Para se distinguirem de uma direita cujo modelo de liberalização económica aceitaram numa forma mitigada, começaram a valorizar outra vez os "valores republicanos", como fez a esquerda socialista francesa, e sobretudo adoptaram o programa de "fracturas culturais" da esquerda americana.
A fim de dar profundidade histórica a esta reconfiguração ideológica, identificaram-se com o laicismo anticlerical da velha I República. Mais: ocorreu-lhes que identificar esta democracia com a I República de 1910-1926 seria a maneira de legitimar oficialmente o exclusivismo de esquerda e fazer com que os liberais e os conservadores não se sentissem em casa no actual regime. O resultado é um travesti histórico. Os velhos republicanos de 1910 eram profundamente patriotas, machistas e homofóbicos. Foi a I República que, em 1922-1923, proibiu e mandou apreender a ‘Sodoma Divinizada’ de Raul Leal e as ‘Canções’ de António Botto, das primeiras defesas abertas da homossexualidade em Portugal. Que diriam os déspotas do PRP se soubessem que a comissão do centenário pensou em comemorá-los com o casamento gay? Saberiam apreciar a ironia da História?
REPÚBLICAS HÁ MESMO MUITAS
A Coreia do Norte é uma república, tal como Portugal; a Bélgica uma monarquia. O actual regime português tem, felizmente, mais a ver com a Bélgica do que com a Coreia do Norte. A nossa República Portuguesa, desde 1910, já foi muita coisa, com situações constitucionais diversas: a I República (1910-17), a República Nova (1918), outra vez a I República (1919-26), a Ditadura Militar (1926-33), o Estado Novo (1933-74), o PREC (1974-76), a Democracia (a partir de 76). Comemorar a implantação é comemorar o quê? Todos esses regimes? Só um deles – e qual?
REPÚBLICA PARA TODOS OS PORTUGUESES
O grande problema da I República de 1910-26 foi saber-se se era um regime aberto a todos os portugueses ou só para alguns. Os líderes do dominante Partido Republicano Português de Afonso Costa, situado na esquerda radical, achavam que devia ser só para os militantes do seu partido, que monopolizavam o Governo e todos os empregos no Estado. Recusavam o princípio da alternância no poder ("na república não se governa para a direita") e qualquer desvio à linha anticatólica.
Outros republicanos – como os Presidentes Manuel de Arriaga e Sidónio Pais e o "fundador da república", Machado dos Santos – quiseram, pelo contrário, fazer uma "república para todos os portugueses", isto é, conciliadora com a Igreja Católica e aberta à participação no espaço público de quem não era militante dos republicanos ou não tinha ideias de esquerda. Por isso, Arriaga foi deposto em 1915 e Sidónio e Machado dos Santos assassinados (em 1918 e 1921).
DO GOVERNO DA REPÚBLICA PELO REI
É o título de um livro de Diogo Lopes Rebelo publicado em 1496, no tempo do rei D. Manuel I. Como salientou o historiador Vitorino Magalhães Godinho, os reis e as cortes portuguesas a partir do século XV sempre pensaram no reino de Portugal como uma "república" no sentido clássico: um governo em que, independentemente da origem do poder dos governantes, estes regiam o Estado tendo em conta o bem público e de uma maneira regular e legal, sem arbítrio pessoal.
Mais tarde, sobretudo a partir do século XVIII, acrescentou-se a esta ideia de república o princípio da participação dos cidadãos no governo, através de instituições representativas e em nome da soberania da nação. A monarquia constitucional portuguesa, no século XIX, foi esse tipo de "república". Portugal já era, neste sentido, "republicano" muito antes de 1910.
Rui Ramos
Em 2010, a propósito do "centenário da república", vamos comemorar o quê? Uma ideia – a ideia de república? Um acontecimento – o derrube revolucionário da monarquia constitucional nas ruas de Lisboa em 5 de Outubro de 1910? Ou um regime – o que resultou do monopólio do Estado e do constrangimento da vida pública por um partido da esquerda radical, o Partido Republicano Português, entre 1910 e 1926? Talvez alguém, um dia, nos venha explicar o que significa a efeméride. Entretanto, examinemos as hipóteses, antes de reflectir um pouco sobre a especulação político-partidária que pode estar por detrás de tudo isto.
UMA IDEIA?
Se é para comemorar a ideia de república, a escolha do 5 de Outubro de 1910 não é a mais feliz, embora seja há muito tempo feriado nacional. É que aquilo que desde o séc. XVIII interessou aos verdadeiros "republicanos" nunca foi saber se o chefe de Estado é electivo ou não mas o tipo de Estado e vida pública. O ideal republicano era o de uma comunidade de cidadãos independentes a viver sujeitos às leis e não ao arbítrio de outros homens, mesmo que tivessem um rei, como a Grã-Bretanha.
Nesse sentido, o processo de republicanização não foi obra da revolução de 1910 mas da chamada "revolução liberal" da primeira metade do séc. XIX: foram os liberais que reduziram o rei a um chefe de Estado com poderes definidos por uma constituição e que estabeleceram em Portugal o princípio do Estado de Direito e as instituições e cultura da cidadania.
Na prática, os liberais fizeram da monarquia constitucional o que eles referiam como "uma república com um rei", isto é, uma comunidade de cidadãos livres com um chefe de Estado dinástico. A Câmara dos Pares estava aberta a todos os que satisfizessem requisitos legais que nada tinham a ver com o nascimento. A Igreja ainda era oficial (como, aliás, nas repúblicas desse tempo) mas havia liberdade de consciência e estava previsto o registo civil.
Nesse sentido, se as comemorações de 2010 visam celebrar o fim da monarquia constitucional, governada pelos liberais, estaremos então perante uma festa reaccionária para vitoriar o fim de um regime que trouxe as instituições do Estado moderno, a extinção das ordens religiosas, o Código Civil e o maior eleitorado, em termos proporcionais, antes de 1975?
Em 1910, é verdade, a monarquia constitucional estava em grandes apuros. Tinha uma classe política desacreditada e incapaz de assegurar bom governo e o jovem rei D. Manuel II era atacado por quase toda a gente, da direita e da esquerda. O Partido Republicano Português, um movimento sobretudo lisboeta, conseguira criar um sério problema de ordem pública que a monarquia constitucional nunca poderia ter resolvido sem se negar a si própria, tornando-se num regime repressivo, o que a sua classe política não podia aceitar. Quando o PRP resolveu tentar a sua sorte, em Outubro de 1910, subvertendo a guarnição de Lisboa, quase ninguém apareceu para defender o regime.
Tudo isto é verdade. Mas se o objectivo é celebrar a morte de sistemas políticos apodrecidos, ignorando o que se lhe seguiu, não deveríamos comemorar também o 28 de Maio de 1926, que pôs fim a um regime desacreditado?
UM REGIME?
Gostamos de contrastar o actual regime democrático, desde 1974, com a ditadura do Estado Novo (1933-1974). Mas o regime implantado em Portugal em 1910 e que durou até 1926, a chamada I República, tem tão pouco a ver com a actual democracia como o salazarismo. A I República passou por várias situações e foi dirigida por várias personalidades. Mas na sua versão dominante, associada ao monopólio do poder pelo Partido Republicano Português de Afonso Costa, foi um dos regimes mais intolerantes, exclusivistas e violentos do séc. XX em Portugal.
A "democracia" do PRP assentou na redução do eleitorado através da negação do direito de voto aos analfabetos: durante a monarquia, puderam votar 70% dos homens adultos em Portugal; com a I República, essa percentagem reduziu-se a 30%. A "tolerância" de Afonso Costa consistiu numa guerra de morte à Igreja Católica, sujeita a uma "lei de separação" que visava, de facto, o contrário: a sujeição do clero e dos católicos à prepotência e arbítrio de um Estado hostil. Críticos e oposicionistas ficaram sujeitos à violência dos ‘gangs’ armados do PRP, que em 1911 trataram de destruir (dizia-se então "empastelar") todos os jornais ditos "monárquicos" em Lisboa.
A I República foi ainda o primeiro regime a excluir expressamente as mulheres da vida cívica, ao negar-lhes por lei o direito de voto. Nas colónias de África, seguiu uma política dura e racista, que em 1915 chegou ao genocídio das populações do Sul de Angola. Afonso Costa forçou ainda a entrada de Portugal na I Guerra Mundial (1914-1918). Em dois anos, houve quase tantos mortos como nos 13 anos de guerras coloniais entre 1961 e 1974. É com este regime que a nova democracia portuguesa quer identificar-se em 2010?
O que explica então esta fúria comemorativa? Fundamentalmente, as metamorfoses da esquerda. As esquerdas portuguesas, há 30 anos, eram marxistas, de linha soviética, maoista ou social-democrata "avançada". Desprezavam os velhos republicanos, patriotas e colonialistas, de que uma parte até aderira ao Estado Novo na década de 1960, por causa das colónias (Norton de Matos, por exemplo, tornou--se uma referência da propaganda colonial salazarista). Basta ler os livros de História publicados na década de 1970 por autores marxistas: o republicanismo era para eles uma coisa "pequeno-burguesa", de caixeiros com bigodes.
Depois do 25 de Abril de 1974, o coronel Vasco Gonçalves, na tomada de posse do II Governo Provisório, em Julho, avisou logo que a revolução não tinha sido feita para voltar "ao triste passado de antes de 1926". Exactamente: a república, para as esquerdas portuguesas em 1974, era um "triste passado". Aliás, um dos partidos logo convidados para integrar o Governo Provisório foi o Partido Popular Monárquico, por via do arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles. Tanto Álvaro Cunhal como Mário Soares, filhos de antigos republicanos, evitaram o anticlericalismo, até para poderem conviver com os "católicos progressistas", que formaram uma das principais componentes das esquerdas portuguesas na década de 1970.
A Democracia em Portugal, entre 1974 e 1976, foi construída contra o Estado Novo mas também contra a I República. Desde logo, constitucionalmente. Ninguém queria o parlamentarismo e o desregramento dos partidos. Por isso, a Constituição de 1976 inspirou-se na monarquia constitucional, ao estabelecer um Presidente da República que, à parte o ser eleito por sufrágio universal, tinha os mesmos poderes do Rei da Carta Constitucional de 1826. Por essa via, o regime com o qual, de facto, a actual democracia tem mais em comum é a monarquia constitucional de 1826-1910.
As esquerdas portuguesas só mudaram de opinião perante a velha república quando deixaram de ser marxistas e de querer fazer em Portugal uma revolução socialista. Para se distinguirem de uma direita cujo modelo de liberalização económica aceitaram numa forma mitigada, começaram a valorizar outra vez os "valores republicanos", como fez a esquerda socialista francesa, e sobretudo adoptaram o programa de "fracturas culturais" da esquerda americana.
A fim de dar profundidade histórica a esta reconfiguração ideológica, identificaram-se com o laicismo anticlerical da velha I República. Mais: ocorreu-lhes que identificar esta democracia com a I República de 1910-1926 seria a maneira de legitimar oficialmente o exclusivismo de esquerda e fazer com que os liberais e os conservadores não se sentissem em casa no actual regime. O resultado é um travesti histórico. Os velhos republicanos de 1910 eram profundamente patriotas, machistas e homofóbicos. Foi a I República que, em 1922-1923, proibiu e mandou apreender a ‘Sodoma Divinizada’ de Raul Leal e as ‘Canções’ de António Botto, das primeiras defesas abertas da homossexualidade em Portugal. Que diriam os déspotas do PRP se soubessem que a comissão do centenário pensou em comemorá-los com o casamento gay? Saberiam apreciar a ironia da História?
REPÚBLICAS HÁ MESMO MUITAS
A Coreia do Norte é uma república, tal como Portugal; a Bélgica uma monarquia. O actual regime português tem, felizmente, mais a ver com a Bélgica do que com a Coreia do Norte. A nossa República Portuguesa, desde 1910, já foi muita coisa, com situações constitucionais diversas: a I República (1910-17), a República Nova (1918), outra vez a I República (1919-26), a Ditadura Militar (1926-33), o Estado Novo (1933-74), o PREC (1974-76), a Democracia (a partir de 76). Comemorar a implantação é comemorar o quê? Todos esses regimes? Só um deles – e qual?
REPÚBLICA PARA TODOS OS PORTUGUESES
O grande problema da I República de 1910-26 foi saber-se se era um regime aberto a todos os portugueses ou só para alguns. Os líderes do dominante Partido Republicano Português de Afonso Costa, situado na esquerda radical, achavam que devia ser só para os militantes do seu partido, que monopolizavam o Governo e todos os empregos no Estado. Recusavam o princípio da alternância no poder ("na república não se governa para a direita") e qualquer desvio à linha anticatólica.
Outros republicanos – como os Presidentes Manuel de Arriaga e Sidónio Pais e o "fundador da república", Machado dos Santos – quiseram, pelo contrário, fazer uma "república para todos os portugueses", isto é, conciliadora com a Igreja Católica e aberta à participação no espaço público de quem não era militante dos republicanos ou não tinha ideias de esquerda. Por isso, Arriaga foi deposto em 1915 e Sidónio e Machado dos Santos assassinados (em 1918 e 1921).
DO GOVERNO DA REPÚBLICA PELO REI
É o título de um livro de Diogo Lopes Rebelo publicado em 1496, no tempo do rei D. Manuel I. Como salientou o historiador Vitorino Magalhães Godinho, os reis e as cortes portuguesas a partir do século XV sempre pensaram no reino de Portugal como uma "república" no sentido clássico: um governo em que, independentemente da origem do poder dos governantes, estes regiam o Estado tendo em conta o bem público e de uma maneira regular e legal, sem arbítrio pessoal.
Mais tarde, sobretudo a partir do século XVIII, acrescentou-se a esta ideia de república o princípio da participação dos cidadãos no governo, através de instituições representativas e em nome da soberania da nação. A monarquia constitucional portuguesa, no século XIX, foi esse tipo de "república". Portugal já era, neste sentido, "republicano" muito antes de 1910.
Rui Ramos