quarta-feira, 26 de março de 2014

Jornal Açoriano Oriental: Artigo de Opinião - "A crise da Crimeia"

"A recente anexação da Crimeia por parte da Rússia demonstra que a História está de novo a agitar-se e a quebrar os frágeis equilíbrios alcançados no período imediatamente posterior ao fim da Guerra Fria. 
Durante algum tempo viveu-se uma espécie de “Pax Americana”, que garantiu alguma estabilidade no âmbito do sistema internacional de Estados. A supremacia militar e económica americana manteve o equilíbrio e protegeu o status quo. Mas tudo isso acabou devido à emergência de novas grandes potências económicas globais como a China e a Índia, à alteração dos equilíbrios europeus por força do caminho ascendente da Alemanha e da Rússia e, sobretudo, devido ao declínio económico dos Estados Unidos.
Os Estados Unidos não possuem hoje a capacidade económica necessária para manter a presença militar que exige o seu papel de “polícia global”. Depois das intervenções no Iraque e no Afeganistão – que nada resolveram e que apenas se limitaram a congelar, por algum tempo, a futura emergência de grupos radicais – a opinião pública americana regressou a uma posição profundamente isolacionista.
No contexto da retirada americana, as rivalidades e a luta pelas respetivas hegemonias regionais voltaram a reemergir com violência. O episódio da Crimeia é, neste sentido, precursor, embora o guião da crise mais não seja que um déjà vu. 
A Alemanha de Hitler ocupou, em 1938, uma parte significativa da Checoslováquia – os Sudetas – com o argumento que o fazia para proteger as populações alemãs, maioritárias nessa zona. As potências ocidentais decidiram negociar e cederam no essencial. Ficou célebre o episódio do Primeiro-Ministro britânico, Neville Chamberlain, a agitar, perante uma multidão exultante, a folha do acordo que garantia a paz na Europa e no Mundo. A Segunda Guerra Mundial deflagrou no ano seguinte. 
Desta feita, o guião russo não é muito diferente. O Presidente Putin limitou-se a anexar uma região de maioria étnica russa. O problema é que existem fortes minorias de língua russa numa parte significativa dos Estados que resultaram da desintegração da União Soviética, a começar pelo que resta da Ucrânia.
Muitos temem que o êxito da anexação da Crimeia – que projetou o Presidente Putin para quotas de popularidade históricas – e a resposta fraca das potências ocidentais, encoraje o governo russo a ocupar, no futuro, outras zonas de maioria russa na Europa de Leste e na Ásia Central. Esta é a questão fundamental. 
É hoje evidente que a Rússia é uma potência revisionista, tal como o foram a Alemanha, a Itália e o Japão no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. Sucede que, embora a Rússia possa ser considerada uma potência militar considerável, a sua dimensão económica relativamente menor – possui um PIB equivalente à Itália e 8 vezes mais pequeno que o dos Estados Unidos – não lhe permite acalentar, numa base meramente racional, uma política de revisão de fronteiras à escala global. Algo que acabaria, certamente, por provocar uma reação muito forte das potências ocidentais. 
Resta, assim, saber se Putin é um conquistador com sentido de autocontenção, ao melhor estilo de Bismarck, ou se, pelo contrário, tem um apetite voraz e insaciável ao estilo de Napoleão e de Hitler. 
A Rússia de Putin é um gigante militar e um anão económico. Uma espécie de Prússia do século XXI. Mirabeau disse um dia que “a Prússia não é um Estado com um exército, é antes um exército que tem um Estado”. Esta Rússia não está muito longe desta imagem. 
Na minha perspetiva, as autoridades russas estão absolutamente conscientes que não existirá um “segundo Munique” e que aproveitaram bem a sua janela de oportunidade. A ocupação de outros territórios ucranianos – mesmo o que são de maioria linguística russa – não será tolerada pelas potências ocidentais. As sanções económicas (uma intervenção militar, mesmo nessas circunstâncias, não seria equacionada) seriam, certamente, brutais.
Nestas circunstâncias, é também aconselhável que as instituições europeias e os Estados que integram a União Europeia moderem o apetite de expansão e de hegemonia económica da Alemanha na Europa de Leste, em especial no interior das fronteiras da ex-URSS. Não é aceitável que a Alemanha empurre o resto da União Europeia para um choque geopolítico que reúne todas as condições para voltar a correr mal. 
Uma nota final para as possíveis consequências da relativa inação americana no âmbito da anexação da Crimeia. Temo que a China e outras potências regionais possam ter concluído que os Estados Unidos não estão em condições de responder a atos de revisão de fronteiras - e mesmo de anexação territorial – perpetrados por outras potências militares e nucleares.• 
Paulo Estêvão"
In Jornal Açoriano Oriental