segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

As Fechaduras do Corvo

A ilha do Corvo, situada nos confins do Atlântico português e europeu, encerra em si o mito do mistério e da impossibilidade. É uma espécie de pequena jangada milagrosamente ancorada no âmago de um Oceano interminável e poderoso.

Desde os primórdios da descoberta que é sinónimo de afirmação de um povo indómito e independente. Desde sempre, muitos, conceberam-na como uma espécie de ilhéu que devido à sua pequena dimensão e isolamento não teria condições para se manter permanentemente povoada.

Ao longo dos séculos, gerações de corvinos determinados agarram-se aos seus penhascos e, isolados de tudo e de todos, protagonizaram uma história épica de sobrevivência que moldou uma forma diferente de ser e de estar.

As histórias de um passado de meio milénio falam de uma solidariedade e de um espírito de entreajuda sem limites. O conceito de família diluiu-se, para dar lugar a um forte espírito comunitário. Para enfrentar as privações decorrentes de um isolamento extremo, todos tinham de estar unidos no ideal superior da sobrevivência.

O Estado Português, geneticamente débil, sempre foi assim: centenas de comunidades lusas – espalhadas desde a selva amazónica aos confins do Extremo Oriente – habituaram-se a contar, apenas, consigo próprias. A sua sobrevivência, em muitos casos, é obra do engenho e da extrema tenacidade dessas populações.

O corvino actual herdou uma aguda percepção da sua especificidade cultural. Sabe que, acima de tudo, é um sobrevivente secular. Os arcaísmos que persistem na sua oralidade lembram-nos que aqui a história andou mais devagar. As velhas histórias de piratas – noutros locais remetidas para os impessoais livros de história – são aqui contadas com o entusiasmo e os pormenores de quem conta uma narrativa do quotidiano.

Sim, a noção de tempo é aqui diferente. O efémero não tem lugar. As histórias que, pelo seu exotismo ou carácter extraordinário, pulsaram para fora do quotidiano fugiram às amarras impiedosas do tempo e tornaram-se intemporais. São as histórias de sempre, pertencem a todos e a todos os tempos.

Os objectos do quotidiano reflectem a realidade social e ocupacional das populações. Se logram sobreviver ao tempo e superar a concorrência desleal das inovações tecnológicas, tornam-se testemunhas privilegiadas de outros tempos e em elementos de continuidade que juntam passado e presente.

As fechaduras do Corvo são um desses elos matriciais dos tempos. Têm a beleza e a atracção dos objectos únicos. Não se encontram fechaduras com estas características no nosso espaço insular e a sua origem permanece misteriosa e discutível.São feitas de cedro zimbro, uma madeira existente na ilha. A sua estrutura tem a argúcia das coisas simples: a simetria projectada pela chave de madeira permite mover o encaixe provocado pelos vermelhos que funcionam como autênticos trincos.

A construção de uma fechadura com estas características respondeu às necessidades sentidas pela população, num determinado período da sua história. A madeira substitui, com vantagem, o metal em climas húmidos. A simplicidade da sua construção não exigia uma perícia técnica muito especializada, facto que a tornou acessível a todos.

No entanto, a sua extrema vulnerabilidade – devido à fraca resistência do material em que é construída – evidencia, de forma indirecta, a natureza peculiar da vida comunitária no Corvo. Na verdade só uma sociedade isolada e com uma forte coesão social pode conceber um instrumento de protecção dos bens privados cuja eficácia se baseia mais na confiança do que no possível carácter dissuasório do mecanismo.

A peculiar fechadura de madeira corvina é quase irrepetível, noutro lugar, nos dias de hoje. Ela representa uma exteriorização da confiança e uma crença nos outros que a generalidade das outras comunidades já perderam.É por isso que ela é emblemática da ilha do Corvo. A sua sobrevivência é um marco psicológico, um derradeiro triunfo do mundo comunitário sobre o individualismo exacerbado dos nossos dias.