terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Descobrir o Corvo

Viver no Corvo é um privilégio só ao alcance de pouco mais de 4 centenas de pessoas. Neste preciso momento em que escrevo houve-se um silêncio completo e puro. O horizonte é prateado e infinito. Sem o ruído da civilização, o mundo parece mais simples e Deus – esse esquecido – mais próximo. O Corvo contínua a ter, de certa forma, esse ambiente de mosteiro que Raul Brandão descreveu, de forma genial, no início do século passado.

A ilha permanece a eterna desconhecida de sempre. Dezenas de turistas visitam-na diariamente no Verão e, após não mais de duas horas de permanência, ganham o direito a conhecer… o Caldeirão. Os organizadores desses rapidíssimos safaris vendem-lhes a ideia que esse tempo é mais que suficiente para conhecer pormenorizadamente a pequeníssima ilha do Corvo.

Pobres diabos! Vêem de tão longe e só lhes oferecem aquilo que qualquer postal banal lhes pode dar. A visão de um sítio já visto, sem surpresas e sem alma. Daqui a uns dias – já os antevejo – contarão pormenorizadas descrições, aos vizinhos e familiares, da extraordinária visita que fizeram a este recôndito lugar.

Na verdade, não estiveram aqui. Não se pode estar no Corvo e ter hora de embarque marcada. Estar no Corvo implica aceitar o fim da noção de tempo e sentir todo o peso e o espírito indomesticável do vento e do mar. Implica ver a natureza ganhar, vezes sem conta, a batalha da vontade a barcos e aviões. Tudo isto com a resignação e a fé de quem se habituou, ao longo de cinco séculos, a olhar o mar e a vislumbrar a certeza que – só não se sabe bem quando – surgirá, por fim, fatal como o destino, uma nova silhueta no horizonte.

Se tivesse estado no Corvo, o turista teria, certamente, admirado a incrível resistência do corvino às regras e à burocracia do Mundo. Votados, durante séculos, ao mais completo abandono, habituados a enfrentarem sozinhos as fomes endémicas e a incrível vitalidade dos elementos, os corvinos interiorizaram uma indisfarçável desconfiança em relação ao Estado e às suas imposições. Amam a simplicidade das coisas e não reconhecem, a nenhum homem, um estatuto superior ao seu.

Se tivesse estado no Corvo, o turista poderia ter saboreado essa sensação irrepetível, leve e transcendente, do usufruto da liberdade e de ter integrado uma espécie de rebelião colectiva contra muitas das enfadonhas regras da nossa sociedade burocrática.

Poderia ter admirado a incrível e arreigada noção igualitária dos corvinos. Os ricos, cultos e poderosos deste Mundo são aqui tratados sem os salamaleques da nossa sociedade de salão. Não conheço nenhum outro sítio no Mundo em que os homens e mulheres sejam mais iguais. Isto é algo extraordinário, sobretudo se pensarmos que, por utopias destas, morreram, ao longo dos séculos, muitos milhões de homens e mulheres.

Marx teria aqui, certamente, vislumbrado um pouco da sua utopia. Mas o Corvo também é, à sua maneira, uma espécie de teocracia. A Sua presença sente-se por todo o lado: nas arribas imponentes, na beleza verde dos campos, no infinito do mar, no canto das milhares de aves da ilha e no frente a frente bíblico que a rareza dos homens, em contraposição à omnipresença da natureza, propicia aqui, de forma inelutável.