terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A Casa da Ilha

No horizonte, através da janela do pequeno avião que liga, três vezes por semana, a ilha do Corvo ao mundo, é visível uma minúscula forma oval.

O viajante sabe que comprou o bilhete para aquele destino. Porventura já leu e ouviu qualquer coisa sobre a ilha do Corvo. Coisas triviais: a mais pequena dos Açores, isolada, triste e, noutros tempos, infestada de piratas. Sabe que ali vivem 400 almas e que para além daquele pedaço de terra a bandeira portuguesa deixa de flutuar.

O destino tem a atracção do fim. Qual é o viajante que não quer saborear o prazer de chegar ao derradeiro promontório? Talvez, com um pouco de utopia, descobrir a terra onde a civilização fraqueja.

Procuram algo diferente. Um sítio de ausências, uma imagem do passado onde o tempo não passou.

Durante a viajem descobriram a monotonia do mar. Habituados ao salpico de ilhas do Grupo Central, perscrutam o horizonte à procura da mais pequena. Estranham a demora e a distância.

Por fim chegam. No horizonte uma ilha quase estéril, sem árvores e sem pessoas. No fim, só no fim, a pista e as casas.

É uma imagem fascinante. No meio do nada surge um pequeno povoado improvável. A civilização está aqui. Computadores no terminal, polícias, bombeiros, automóveis e a anarquia, bem portuguesa, do estacionamento junto da aerogare.

Depois a Vila. Impressiona o aconchego. As casas encontram-se, literalmente, em cima umas das outras. No entanto, por ténue que seja, existe sempre um murinho ou uma canadinha a separar as habitações. Como se aqui se tivesse tentado a aliança improvável entre o individual e o comunitário. Paradoxal, mas real.

Aos forasteiros incomoda a falta de nitidez das fronteiras. Este é um mundo que, desde o princípio, deixam de perceber.

É um mundo comunitário, mas não é só isso. As marcas do individualismo estão lá e o código é simples de decifrar. A base de tudo é a confiança, que aqui é tão natural como a respiração. Por isso não se fecham as portas à chave. Por isso, atrás das paredes comuns, não se ouve, nem se escuta o alheio. O individualismo pode sobreviver, sem muros de betão.

No casco antigo da Vila sobrevive, inamovível, a estrutura secular das casas. São em norma, caracterizadas pela existência de dois pisos desenhados de forma rectangular ou em “L”.

Internamente, no entanto, as casas do Corvo apresentam uma particularidade em relação ao resto da Região. As lojas e a cozinha localizam-se no piso inferior, os quartos no superior. A diferença está na localização da cozinha que, ao contrário do que sucede nas outras ilhas dos Açores, é concebida junto das lojas.

No exterior, a alvenaria de pedra encontra-se à vista, assim como o acesso ao primeiro piso que se processa através de uma escadaria exterior. A cobertura é em telha de meia-cana apoiada numa estrutura, quase sempre, rudimentar.

Ao contrário da profusão de objectos decorativos que caracterizam os novos nichos urbanos – de gosto mais que duvidoso – a decoração interior das casas do Corvo caracteriza-se pela extrema simplicidade. As casas do Corvo são a herança duradoura e visível de um passado muito difícil sob o ponto de vista económico.

Isolada do mundo e submetida à mais cruel e duradoura carga fiscal da história da colonização do arquipélago – com o senhorio sempre ausente – a população corvina não criou grandes desigualdades sociais. Noutros tempos eram todos, sem excepção, muito pobres.

Existiu sempre – e persiste – uma notável igualdade social entre os corvinos. Isso mesmo se reflecte no casario do núcleo histórico em que, em regra, não são observáveis casas que se destaquem no tamanho ou na qualidade de construção.

Em suma, as casas contam a história desta ilha. Um percurso feito de incrível persistência, nas condições mais difíceis. Isolada, sem protecção militar e submetida a um regime fiscal esmagador, a população corvina sobreviveu cinco séculos graças à extraordinária união das suas gentes.

Juntos sobreviveram a tudo. Por isso é normal que tenham querido juntar-se no seu núcleo populacional. Numa área de apenas 0,7 km2 vive toda a população da ilha, em casas irmanadas numa verdadeira teia de proximidade, cumplicidade e colaboração.

A Vila é como que uma casa comum feita da união das casas de todos. A casa do Corvo nunca se compreenderá no singular. A sua natureza é comunitária no espírito e individual na posse.